terça-feira, 19 de março de 2013

"Quando o legislador cria um problema"

Não posso deixar de aqui infra transcrever um excelente artigo de opinião que retrata, de forma concisa e certeira, o primordial problema dos processos de regulação das responsabilidades em Portugal.

"O diploma da Organização Tutelar de Menores foi publicado a 27 de Outubro de 1978 (DL 314/78), tendo sofrido oito alterações nas últimas três décadas. Estranhamente, a última revisão do Legislador à OTM ocorreu há nove anos (L 31/2003, de 22/08), certamente convicto que tinha atingido o expoente máximo da perfeição normativa. Malogradamente, não se nos afigura o caso, sobretudo no que concerne à regulação do exercício das responsabilidades parentais, ficando os menores sujeitos às intempéries, incertezas e beligerância dos seus pais durante anos.

Sabemos que, em caso de separação judicial ou de facto, de casados ou não, são devidos alimentos aos filhos do casal, regulando-se a sua prestação mediante acordo entre os pais. Neste acordo é igualmente fixado o exercício das responsabilidades parentais, determinando-se os direitos e obrigações de cada progenitor na vida quotidiana dos seus filhos.

Tratando-se de separação litigiosa, deverá o Tribunal convocar os pais para uma conferência obrigatória, na qual “o juiz procurará obter acordo que corresponda aos interesses do menor sobre o exercício do poder paternal”. Frustrando-se este acordo, compete ao juiz estabelecer um regime provisório quando “o entenda conveniente para os interesses do menor”.

Na ausência de qualquer regime provisório, os pais são convidados a apresentar as suas alegações para se pronunciarem sobre “o que tiverem por conveniente”, protelando-se o desacordo no tempo até ser proferida sentença (o que, por experiência, poderá levar dois anos). Ergo, tal significa que o menor é forçado a conviver com a violência psicológica da luta pelo poder entre os seus pais, durante a pendência do litígio.

Assim, na prática, os menores caem num vazio legislativo, permanecendo à mercê do progenitor mais forte e influente. Ora, parece impossível que o Legislador deixe o acordo provisório à mercê da discricionariedade do Tribunal. Embora este último seja visto como o verdadeiro garante da justiça e equidade, dotado do bom senso e sensibilidade que estas situações requerem, a verdade é que raramente exerce essa faculdade, prejudicando gravemente os menores.

A nossa sociedade prontifica-se em acusar os menores de hoje de comportamentos violentos, instabilidade psicológica, insucesso escolar e desinteresse genérico, esquecendo-se que o problema reside em casa, com os pais. Problema, este, que o Tribunal podia e devia solucionar.

Conclui-se, pois, que os menores no nosso país são vistos como bandeiras: hasteadas como símbolo de supremacia do progenitor dominante, adejando ao sabor das querelas familiares. Num país em que, por lei, se determina que “compete aos pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los” e “reconhecer-lhes autonomia na organização da própria vida”, não se compreende a total desresponsabilização dos pais que destroçam a vida dos seus filhos. Se a ideia é a preclusão dos deveres dos pais, então que aos Tribunais se imponha a obrigatoriedade de velar pelos interesses das crianças, decretando um regime provisório para a pendência do litígio.

Perante a ausência de uma decisão formal, não poderá haver cumprimento, nem tão-pouco incumprimento. Inexistindo algo para cumprir, ninguém poderá ser responsabilizado. Logo, nestes casos, melhor será termos uma má decisão (susceptível de discussão e reapreciação), do que nenhuma. Hélas, na ausência de qualquer regime, enveredamos por uma guerra sem regras, onde tudo vale, nenhum dos pais é repreendido e os vencidos serão sempre os mesmos: as crianças. Curioso será relembrar que a lei antiga resolvia este problema. Congratulamos, pois, o Legislador por criar um problema que se arrasta há nove anos..."

Texto da autoria da associada coordenadora da Uría Menéndez-Proença de Carvalho Eduarda Proença de Carvalho e do jurista da mesma sociedade Miguel de Oliveira Martins

In: http://www.advocatus.pt/opiniao/7426-quando-o-legislador-cria-um-problema