segunda-feira, 17 de outubro de 2011

A Insconstitucionalidade da Retroatividade das Leis Fiscais


"A crise financeira que atingiu violentamente o nosso País levou a que o Estado viesse procurar aumentar as suas receitas com o sucessivo lançamento de leis fiscais retroativas. Foi o que sucedeu em 2010, com a elevação sucessiva das taxas de IRS, com aplicação ao ano fiscal em curso. Efetivamente, a Lei nº 11/2010, de 15 de Julho, elevou a taxa máxima do IRS para 45%, tendo sido publicada em 15 de Junho e entrado em vigor a 16 de Junho, com aplicação a todo o ano fiscal de 2010. Logo de seguida, a Lei nº 12-A/2010, de 30 de Junho, elevou todas as taxas do IRS, tendo sido publicada a 30 de Junho e entrado em vigor a 1 de Julho, também para aplicação a todo o ano fiscal de 2010, tendo a taxa máxima do IRS sido fixada em 45,88%.


A Lei nº 55-A/2010, de 31 de Dezembro, que aprovou o Orçamento do estado para 2011, voltou a subir todas as taxas do IRS, fixando agora a sua taxa máxima em 46,5%. Era de supor que tivessem sido ultrapassados já todos os limites em matéria de tributação das pessoas singulares. No entanto, o novo governo não deixou de querer seguir o exemplo do anterior e fez aprovar no Parlamento uma sobretaxa de IRS de 3,5% sobre os rendimentos sujeitos a englobamento auferidos pelas pessoas singulares em 2011, sendo que, em relação aos trabalhadores de pendentes e pensionistas, a sobretaxa é cobrada logo no mesmo ano, através de uma retenção na fonte sobre o subsídio de Natal. Com esta sobretaxa, a taxa máxima de IRS sobe para 50% e nos casos dos trabalhadores dependentes e pensionistas a retroatividade atinge o paroxismo, uma vez que uma especial retenção na fonte obrigará a pagar na íntegra, em 2011, um aumento de impostos que só deveria ser liquidado e pago em 2012.

É difícil imaginar maior violação dos direitos e legítimas expectativas dos cidadãos do que a que resulta da retroatividade fiscal, sendo claríssimo que essa retroatividade é inconstitucional. Efetivamente, desde a revisão constitucional de 1997 que se encontra consagrado no art.º 103º, nº 3, da Constituição um direito de resistência dos contribuintes a não pagar impostos que tenham natureza retroativa. Em consequência, o artigo 12º, nº 1, da Lei Geral Tributária proíbe a criação de impostos retroativos, estabelecendo o seu nº 2 que, em relação a factos tributários de formação sucessiva, a lei nova só se aplica ao período decorrido a partir da sua entrada em vigor.

Perante um enquadramento jurídico tão claro, pergunta-se o que leva os decisores políticos a sequer ponderar avançar com uma retroatividade fiscal tão evidente, correndo o risco de impugnação generalizada das liquidações de imposto e de invocação do direito de resistência pelos contribuintes? A resposta é óbvia: a jurisprudência complacente do Tribunal Constitucional nesta matéria.

Efetivamente, tivemos o já célebre Acórdão 11/83, em que o Tribunal Constitucional deu a sua benção ao imposto extraordinário retroativo aprovado pelo bloco central, mostrando uma enorme permissividade em relação à retroatividade fiscal. E temos também uma especiosa distinção efetuada pelo Tribunal Constitucional entre a retroatividade própria e a «retroatividade inautêntica» ou «retrospetividade», defendendo que, salvo em matéria penal, não chega a haver retroatividade se a lei nova for aplicada alterando os efeitos dos factos só parcialmente produzidos antes da sua entrada em vigor. Nesses casos, a norma só seria inconstitucional se alterasse de forma «inadmissível, intolerável, arbitrária, demasiado onerosa e inconsistente» a situação, acabando sempre por considerar o Tribunal Constitucional as normas em questão como admissíveis, toleráveis, justas, pouco onerosas e consistentes (cf. entre outros, os Acórdãos 232/91, 486/97 e 467/03).

Só que no caso dos impostos periódicos sobre o rendimento esta fundamentação é absolutamente inconsistente, uma vez que a periodização anual é artificial, dado que o facto tributário se verifica no momento em que o rendimento é auferido. Ora, a proteção da confiança do contribuinte impõe que este saiba qual é a tributação que vai sofrer no momento em que pratica o facto tributário. Se a respectiva taxa é alterada à posteriori, é manifesto que há uma retroatividade autêntica. Daí que o art.º 12º nº 2 da LGT obrigue, neste caso, a dividir o período fiscal em dois.

A permissividade do Tribunal Constitucional em relação à retroatividade fiscal atingiu, porém, o extremo no Acórdão 399/2010, onde, perante as sucessivas leis retroativas surgidas em 2010, o Tribunal Constitucional veio declarar que «as leis nºs 11/2010 e 12-A/2010 prosseguem um fim constitucionalmente legítimo, isto é, a obtenção de receita fiscal para fim de equilíbrio das contas públicas, têm caráter urgente e premente e, no contexto de anúncio das medidas conjuntas de combate ao défice e à dívida pública acumulada, não são suscetíveis de afetar o princípio da confiança ínsito no Estado de Direito, pelo que não é possível formular um juízo de inconstitucionalidade sobre as normas dos artigos 1º e 2º da Lei nº 11/2010, de 15 de Junho, nem sobre as normas dos artigos 1º e 20º da Lei nº 12-A/2010, de 30 de Junho, na medida em que estes preceitos se destinem a produzir efeitos a partir de 1 de Janeiro de 2010». Ou seja, o critério passou a ser de que o fim constitucionalmente legítimo de combate ao défice e à dívida pública permite claramente sucessivas alterações fiscais retroativas durante o exercício em curso. Com base neste critério, os contribuintes perderam toda a segurança jurídica em relação às leis fiscais. Consideramos altamente criticável que o Tribunal Constitucional, que deveria garantir os direitos constitucionais dos cidadãos contra os abusos do poder político, tenha, afinal, uma jurisprudência tão complacente em matéria fiscal, levando a que o poder legislativo se sinta absolutamente livre para afrontar a Constituição mediante a criação de sucessivas leis fiscais retroativas. Nesta época de brutal crise económica, em que a voracidade do Estado pretende satisfazer a todo o custo a sua fome despesista com a arrecadação de cada vez mais receita fiscal, é absolutamente lamentável que os cidadãos não tenham sequer assegurado que será respeitada a garantia constitucional da não retroatividade das leis fiscais."

Dr. Luís Menezes de Leitão,
in "Boletim da Ordem dos Advogados", nº 81/82, páginas 84 e 85