Não posso deixar de aqui infra transcrever um excelente artigo de opinião que retrata, de forma concisa e certeira, o primordial problema dos processos de regulação das responsabilidades em Portugal.
"O diploma da Organização Tutelar de Menores foi publicado a 27 de Outubro de
1978 (DL 314/78), tendo sofrido oito alterações nas últimas três décadas.
Estranhamente, a última revisão do Legislador à OTM ocorreu há nove anos (L
31/2003, de 22/08), certamente convicto que tinha atingido o expoente máximo da
perfeição normativa. Malogradamente, não se nos afigura o caso, sobretudo no que
concerne à regulação do exercício das responsabilidades parentais, ficando os
menores sujeitos às intempéries, incertezas e beligerância dos seus pais durante
anos.
Sabemos que, em caso de separação judicial ou de facto, de casados ou
não, são devidos alimentos aos filhos do casal, regulando-se a sua prestação
mediante acordo entre os pais. Neste acordo é igualmente fixado o exercício das
responsabilidades parentais, determinando-se os direitos e obrigações de cada
progenitor na vida quotidiana dos seus filhos.
Tratando-se de separação litigiosa, deverá o Tribunal convocar os pais
para uma conferência obrigatória, na qual “o juiz procurará obter acordo que
corresponda aos interesses do menor sobre o exercício do poder paternal”.
Frustrando-se este acordo, compete ao juiz estabelecer um regime provisório
quando “o entenda conveniente para os interesses do menor”.
Na ausência de qualquer regime provisório, os pais são convidados a
apresentar as suas alegações para se pronunciarem sobre “o que tiverem por
conveniente”, protelando-se o desacordo no tempo até ser proferida sentença
(o que, por experiência, poderá levar dois anos). Ergo, tal significa que o
menor é forçado a conviver com a violência psicológica da luta pelo poder entre
os seus pais, durante a pendência do litígio.
Assim, na prática, os menores caem num vazio legislativo, permanecendo à
mercê do progenitor mais forte e influente. Ora, parece impossível que o
Legislador deixe o acordo provisório à mercê da discricionariedade do Tribunal.
Embora este último seja visto como o verdadeiro garante da justiça e equidade,
dotado do bom senso e sensibilidade que estas situações requerem, a verdade é
que raramente exerce essa faculdade, prejudicando gravemente os menores.
A nossa sociedade prontifica-se em acusar os menores de hoje de
comportamentos violentos, instabilidade psicológica, insucesso escolar e
desinteresse genérico, esquecendo-se que o problema reside em casa, com os pais.
Problema, este, que o Tribunal podia e devia solucionar.
Conclui-se, pois, que os menores no nosso país são vistos como bandeiras:
hasteadas como símbolo de supremacia do progenitor dominante, adejando ao sabor
das querelas familiares. Num país em que, por lei, se determina que “compete
aos pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes, prover
ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los” e
“reconhecer-lhes autonomia na organização da própria vida”, não se
compreende a total desresponsabilização dos pais que destroçam a vida dos seus
filhos. Se a ideia é a preclusão dos deveres dos pais, então que aos Tribunais
se imponha a obrigatoriedade de velar pelos interesses das crianças, decretando
um regime provisório para a pendência do litígio.
Perante a ausência de uma decisão formal, não poderá haver cumprimento,
nem tão-pouco incumprimento. Inexistindo algo para cumprir, ninguém poderá ser
responsabilizado. Logo, nestes casos, melhor será termos uma má decisão
(susceptível de discussão e reapreciação), do que nenhuma. Hélas, na ausência de
qualquer regime, enveredamos por uma guerra sem regras, onde tudo vale, nenhum
dos pais é repreendido e os vencidos serão sempre os mesmos: as crianças.
Curioso será relembrar que a lei antiga resolvia este problema. Congratulamos,
pois, o Legislador por criar um problema que se arrasta há nove
anos..."
Texto da autoria da associada coordenadora da Uría Menéndez-Proença de Carvalho
Eduarda Proença de Carvalho e do jurista da mesma sociedade Miguel de Oliveira
Martins
In: http://www.advocatus.pt/opiniao/7426-quando-o-legislador-cria-um-problema
terça-feira, 19 de março de 2013
quinta-feira, 17 de maio de 2012
A quem de Direito...
Ainda acerca da mais recente proposta alteração ao Código de Processo Penal, mormente à submissão de arguido a julgamento sumário, para todo e qualquer crime, desde que preenchidos os requisitos do flagrante delito, não posso deixar de realçar esta notícia , segundo a qual, 25 anos depois, conclui-se que mais um inocente foi executado no estado do Texas (EUA), por um crime que não cometeu.
Conforme referido aqui, «para o professor James Liebman e cinco dos seus
estudantes que analisaram o caso nos últimos cinco anos, os eventos em
Corpus Christi são “emblemáticos de um monumental falhanço do sistema de
justiça”. Uma investigação incompleta, uma acusação leviana, um
julgamento apressado, uma sentença irrevogável e a execução de um
inocente – “Tudo o que podia correr mal correu mal neste caso”, resume o
académico.»
Ora,
É este tipo de (in)justiça que, com o julgamento sumário de crimes de natureza grave e complexa, almejamos também para o sistema penal português?
Crimes graves com investigações incompletas e julgamentos apressados para silenciar o ruído das turbas, propiciando a condenação de inocentes... É a persecução deste objectivo que alicerça a agora proposta reforma da lei processual penal?
Ficam aqui as indagações, porque se for...
... o legislador acertou na «mouche» e não precisaremos de 25 anos para concluir que, em Portugal, foram injustamente condenados uns quantos inocentes, por crimes que não cometeram!
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domingo, 13 de maio de 2012
Nova Alteração ao Código de Processo Penal Português
Ao arrepio do basilar princípio da certeza jurídica, o legislador tenciona, uma vez mais, proceder a alterações "cirúrgicas" no âmbito do sistema penal português.
Se no que tange às alterações propostas no âmbito da lei penal substantiva (alteração das regras relativas à suspensão do prazo de prescrição; alteração da natureza semi-pública do crime de furto simples para crime de natureza particular e alterações relativas aos crimes de falsidade de depoimento ou declaração e de falsas declarações), nos moldes em que o foram, nada de excepcionalmente grave, s.m.e., haverá a apontar, o mesmo não se poderá aventar relativamente às propostas alterações à lei processual penal.
Para aquela que será a 20ª alteração ao Código de Processo Penal Português, actualmente em vigor, aplaude-se a eliminação da obrigatoriedade do arguido responder acerca dos seus antecedentes criminais, em todas as fases do processo e não só durante o julgamento. Mas será talvez essa a única medida a aplaudir...
Com efeito, não se poderá conceder qualquer mérito a medidas de alteração que prometem consubstanciar claras limitações aos direitos e garantias de defesa dos arguidos, em prol de uma visão pragmaticamente populista e autoritária, que apenas visa responder aos desabafos da turba social, com medidas excessivamente repressivas e sem qualquer sensibilidade jurídica. No fundo, alterações justiceiras que se esquecem do que é verdadeiramente a Justiça, de que a mesma não se faz a qualquer custo e de que Portugal e os Portugueses, antes de 1974, já foram vítimas desse tipo de justiça!
A título de exemplo, como se poderá conceber que o Juiz de Instrução Criminal (JIC) possa aplicar medidas de coacção mais graves do que as promovidas pelo Ministério Público? O JIC é "garante dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos" - como equívocamente é referido no preâmbulo das propostas apresentadas - ou garante dos direitos, liberdades e garantias dos sujeitos processuais, mormente do arguido ??? Como indaga o mui preclaro Juiz Conselheiro Eduardo Maia Costa "o JIC passará a ser o “guarda da sociedade”, e não o garante dos direitos do arguido?"
Depois, parece também inconcebível (à luz dos constitucionalmente garantidos direitos de defesa) que as declarações de testemunhas, prestadas durante o inquérito, possam ser utilizadas como prova, posteriormente durante o julgamento, caso as testemunhas não possam comparecer, por impossibilidade de o tribunal as notificar para tal efeito, porque esgotadas todas as diligências para apurar o seu paradeiro. Ora, como poderá então o arguido exercer o contraditório de declarações anteriormente prestadas sem a sua presença ou a do seu defensor, se a fonte de tais declarações não é presente a juízo? Como poderão, à luz da mais elementar justiça, tais declarações constituírem meios de prova válidos em julgamento, sem que sobre as mesmas possa o arguido exercer eficaz contraditório???
No que particularmente tange à utilização como meios de prova em julgamento de declarações do arguido, prestadas anteriormente em fase de inquérito ou instrução, perante órgão judiciário e na presença de defensor, admite-se a sua possibilidade, acautelados que sejam os direitos e garantias de defesa do arguido. Contudo, na prática, não consubstanciará de futuro tal medida um entrave à celeridade da investigação criminal? Ora, se o arguido pode posteriormente ser condenado com base nas suas declarações prestadas em sede de inquérito, o melhor será não prestar qualquer declaração e exercer sempre o seu direito ao silêncio, sendo que, se anteriormente poderia colaborar com a investigação criminal e a descoberta da verdade, agora resguardar-se-á no silêncio, não correndo o risco de dizer algo que possa posteriormente servir de alicerce à sua condenação.
Além disso, o legislador aparece agora a propor uma clara limitação ao direito de defesa do arguido, no sentido de que o Mmº Juiz indefira os requerimentos de prova apresentados depois do prazo da contestação e que pudessem ter sido apresentados com a mesma... Mas o objectivo último do processo penal não é a boa decisão da causa e a descoberta da verdade material?? Se um inocente adquirir prova ou conhecimento de prova a seu favor, depois da contestação ou mesmo durante a audiência de julgamento e requerer que tal prova seja produzida, será judicialmente inibido de a apresentar e de provar a sua inocência??
Para finalizar, o que dizer da proposta de julgamentos sumários para casos de flagrante delito, em todo e qualquer crime, independentemente da sua natureza ou gravidade? No fundo o que se propõe, a título meramente exemplificativo, é que o mesmo tribunal singular que julga sumariamente um crime de furto simples de uma carteira, logo de seguida possa julgar, também sumariamente um crime de homicídio qualificado, desde que em ambos dos crimes tenha existido flagrante delito... Ora, esta concepção de justiça é, como supra se referiu, uma concepção autoritária e emanada ao sabor de reclamações populares. Não é com a celeridade de julgamento que se faz justiça em crimes de extrema complexidade social, humana e psicológica, como é o caso dos chamados "crimes de sangue". Como doutamente alerta o já antes citado Juiz Conselheiro Eduardo Maia da Costa "O processo sumário só se justifica na pequena criminalidade. A “sumariedade” do processo é proporcional à menor ilicitude e dano social das condutas. Exportá-lo para os tipos mais graves de criminalidade é romper brutalmente essa relação de proporcionalidade."
Em suma, por tudo o que já se advogou e por tudo o mais que ficou por alegar, entendo que as propostas apresentadas para se proceder à 20ª alteração legislativa ao Código de Processo Penal consubstanciam um claro e manifesto retrocesso a um dos mais obscuros períodos do direito penal português, limitando os direitos e as mais elementares garantias de defesa, de um modo como à 36 anos atrás não se julgava poder voltar a assistir!!
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