sábado, 20 de dezembro de 2008

Assimetrias na Justiça ibérica


Há umas semanas atrás, li
aqui que o Tribunal Supremo espanhol havia condenado a empresa do Metro de Madrid ao pagamento de uma indemnização no montante de 181.169,00 Euros, considerando a companhia responsável pela falta de segurança nas suas instalações, apesar de ter encomendado esse serviço a outra empresa e, consequentemente, responsável, perante o cidadão (autor do pedido indemnizatório) que fora agredido por dois desconhecidos no interior de uma das estações de metro da capital espanhola.

Ainda segundo a mesma notícia, na sentencia «os juízes recordaram ainda o caso de uma sentença semelhante, de 2004, sobre o assassínio de uma passageira no metro de Barcelona (...). Nesse caso, o tribunal estabeleceu que a companhia de transportes "deve velar" pela segurança "dos espaços que formam parte das estações construídas", sem "prejuízo das funções de vigilância que realizam as Forças de Segurança nas áreas públicas para que ninguém sofra qualquer tipo de dano".»

Atento o conteúdo da decisão judicial em causa (a acreditar na notícia!) é deveras curioso o teor da sua fundamentação e o valor do montante indemnizatório sentenciado pelos Meretíssimos Juizes del Tribunal Supremo de España, comparando com jurisprudência dos tribunais portugueses, relativa a responsabilização civil extra-contratual.

Primeiramente e desde logo, é de louvar a atitude justa e corajosa dos magistrados espanhois ao não transigirem perante lobbies e pressões de grandes empresas, de sustentável poderio económico, e julgarem em conformidade com a lei e os deveres de Justiça a que estão adstritos.

Faltará, por vezes, um pouco dessa coragem , imparcialidade e distanciamento nos tribunais portugueses, de tal modo que se assiste, não raros os casos, a duas Justiças formalmente iguais mas , na prática, em tudo distintas: a dos que tudo podem e a dos que se limitam a ver os outros tudo poder! E quando existe essa coragem, ela não é apoiada a nível institucional e de segurança...

Pena que assim o seja... Descredibiliza a JUSTIÇA aos olhos de quem a ela tem direito e em nome de quem a mesma deveria ser administrada...

Depois, é notória a desproporcionalidade de valores indemnizatórios judicialmente sentenciados em Espanha e em Portugal.

NUNCA em Portugal, qualquer Tribunal de 1ª Instância, qualquer Tribunal de Relação ou o STJ, decidiriam no sentido de atribuir ao lesado tal montante!!

Nem a lesão MORTE, a meu ver a mais grave de todas as lesões (que não foi a do caso espanhol), convenceria qualquer tribunal português a condenar o Réu a pagar, ao lesado, indemnização de valor pecuniário igual (veja-se por exemplo o "Caso Aquaparque")!

Lida a notícia, depressa relembrei um processo judicial, que correu termos no Tribunal Judicial de Oeiras e em que patrocinei a lesada.

Tratava-se, em súmula, de processo criminal em que a arguida vinha acusada de um crime de ofensas à integridade física grave por, astuciosamente e movida por sentimento de vingança passional, ter convencido a lesada a dirigir-se a sua casa, ter esperado por ela no cimo das escadas e, de lá, ter lançado àgua a ferver sobre a lesada, causando-lhe:

-queimaduras de 1º, 2º e 3º graus, na face, no tronco e nos membros superiores;
- como sequelas das queimaduras, manchas de hiperpigmentação na face anterior do tórax, em toda a extensão do terço superior e nos quadrantes superiores internos de ambas as mamas;

- deformidade notável e permanente ao nível do ombro direito, com uma cicatriz com coloide em forma de “L”, com as dimensões de 06,00x13,00 cm;

- 30 dias de doença, todos com incapacidade para o trabalho;

- muitas dores.


Ora, a lesada havia-se constituido assistente nos autos e deduzido pedido de indemnização cível no valor de € 15.000,00, a título de danos não patrimoniais causados pela arguida.

Na douta sentença tomou o Exmo. Juiz de Direito como provada toda a matéria de facto e de direito da Acusação Pública e do pedido de indemnização civel, assim como, indubitávelmente provado que a arguida era responsável pelos danos não patrimoniais sofridos pela assistente/demandante. Atenta a fundamentação, sentenciou a arguida a pagar à lesada, a título de danos não patrimoniais, o montante de € 1.500,00, absolvendo-a do demais peticionado a esse título.

Face ao desvalor da conduta e ao seu resultado imensamente danoso, o valor fixado pelo Mmº Juiz de Direito afigurou-se irrisório e seria até visto pelo arguida como um prémio perante o seu ilícito:afinal valia a pena queimar outro ser humano, sem qualquer motivo e de forma vil e torpe! Não lhe sairía assim tão caro! A indemnização não ressarcia, nem prevenia!

Incrédulos e inconformados com o valor da indemnização arbitrada na douta sentença, a assistente e eu próprio, da mesma interpusemos recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, sustentando e pedindo a revogação da sentença recorrida e a sua substituição por outra que fixasse em € 10.000,00 o montante da indemnização.

Em 13/03/2008 (quase um ano após a data de interposição do recurso), os Venerandos Juizes Desembargadores, entendendo que tendo presente a factualidade provada, afigurava-se pecar por defeito a importância fixada na decisão recorrida e que contrastava flagrantemente com os padrões indemnizatórios geralmente adoptados pela jurisprudência, decidiram conceder provimento ao recurso interposto, fixando em € 10.000,00 a indemnização em que a arguida foi condenada pelo tribunal "a quo", a título de danos não patrimoniais.

Analisando e concluindo:

- A justiça espanhola fixou em mais de € 180.000,00 uma indemnização por danos não patrimoniais referentes a uma agressão, a pagar por uma entidade que negligenciou nos deveres de segurança que estava adstrita a proporcionar nas suas instalações. Não se conhecem danos de maior gravidade no lesado...

- A justiça portuguesa, face ao pedido de € 15.000,00 euros, a título de danos não patrimoniais graves e irreparáveis, causados pela arguida que (conforme ficou provado) praticou um crime de ofensas à integridade física grave contra a demandante, primeiro e incompreensívelmente, fixa o valor da indemnização apenas em € 1.500,00, considerando que assim é feita a acostumada Justiça e depois, após competente e sustentado recurso para tribunal superior, fixa tal montante em € 10.000,00.

De € 10.000,00 para € 180.000,00 parece-me haver uma grande distância... E a desproporcionalidade de valores ainda surpreende mais se tomarmos em conta as lesões sofridas em ambos os casos...

Assimetrias reais de duas Justiças vizinhas, mas ao mesmo tempo tão distantes uma da outra...

É a Justiça que temos... e que, em análise e ironizando, nos faz cogitar que, se algum dia soubessemos que iamos inevitavelmente ser agredidos ou queimados...

... mais valeria que o fossemos em Espanha!

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

"Alimentos gravídicos"


aqui tinha comparado, em parte, a eficácia e a concretização prática do direito a alimentos no ordenamento jurídico português, em relação ao brasileiro.

Sucede que, muito recentemente, o direito a alimentos evoluiu na legislação brasileira, ao entrar em vigôr a Lei nº 11.804 de 5 de Novembro de 2008.

Esta nova lei vem disciplinar o "direito a alimentos da mulher gestante e a forma como será exercido", ou seja, os "alimentos gravídicos", devidos ao nascituro e recebidos pela gestante, sendo que tais alimentos compreenderão "os valores suficientes para cobrir as despesas adicionais do período de gravidez e que sejam dela decorrentes, da concepção ao parto, inclusive as referentes à alimentação especial, assistência médica e psicológica, exames complementares, internações, parto, medicamentos e demais prescrições preventivas e terapêuticas indispensáveis, a juízo médico, além de outras que o juiz considere pertinentes".

O futuro pai ficará então obrigado a contribuir, face ás despesas ocasionadas pela gravidez e inerentes condição de gestante, na proporção dos seus recursos económicos, face às necessidades da mulher grávida, bastando para tal a existência de indícios da paternidade.

Parece-me uma posição jurídica extremamente justa, tomada pelo legislador brasileiro.

A concepção de uma vida humana tem por regra (que lógicamente não exclui excepções) implícito um acto sexual, praticado por dois indíviduos de sexo diferente. Sendo assim, se para a concepção de uma vida contribuiram, homem e mulher, de igual modo deverão ambos ser responsabilizados por todas as despesas, decorrentes de tal facto e inerentes à gestação. Não é justo onerar apenas a mulher gestante (por vezes, economicamente, a parte mais desprotegida) com tais encargos!

A obrigação de prestar alimentos aos filhos inicia-se assim, não com o nascimento, completo e com vida, mas com a própria concepção do nascituro.Com a concepção nasce a obrigação de prestar "alimentos gravídicos", até ao nascimento com vida.

A partir de tal momento, tal prestação é automáticamente convertida em pensão de alimentos devidos a menor, a qual deverá ser revista (a pedido de uma das partes), uma vez que na sua razão de ser estarão subjacentes outras necessidades (educação, vestuário, actividades extra-curriculares, etc.) e naturalmente outros encargos.

Se por um lado se afigura justa, como já se disse, a posição jurídica, por outro, há que prever e questionar as controvérsias jurídicas a que pode dar azo o legislado na Lei nº 11.804.

Por exemplo, se os alimentos são devidos desde a concepção, poderemos subsumir que o legislador entende existir vida humana a partir da concepção? E que consequências retirar dessa subsunção ao nível da protecção juridico-penal conferida ao bem vida?

(note-se que, actualmente, a doutrina e jurisprudência portuguesa, assim como grande parte da restante em Direito Comparado, vai no sentido de que existe vida intra-uterina a partir do momento da nidação do zigoto no útero - que se verificará, em regra, no 13º dia após a fecundação - e vida humana a partir do acto de nascimento - quando se iniciam contracções ritmadas, intensas e frequentes que previsivelmente conduzirão à expulsão do feto)

Outra situação controversa que poderá surgir e que, aparentemente, não se afigura ainda solucionada, parece ser o facto de que, se para serem fixados e atribuídos "alimentos gravídicos", bastará existirem indícios (fortes presumo!) da paternidade, não sendo assim necessária a prévia certeza confirmada da paternidade, posteriormente quando for junto aos autos o resultado negativo de tal paternidade, como restituir ao "falso pai" aquilo que ele já prestou à gestante a título de alimentos? Terá ele direito de regresso, relativo tais montantes, sobre a gestante, a título de enriquecimento sem causa? Ou será sobre o verdadeiro pai? E como será ressarcido dos danos não patrimoniais injustamente causados pela autora do pedido de alimentos?

Estas parecem ser importantes e pertinentes questões a cogitar e a resolver pela judicatura brasileira!

Por cá, em Portugal, temos algo parecido: o art. 1884º do Cód. Civil, que prevê "alimentos à mãe". Mas não tenho conhecimento que seja prática comum o pedido de alimentos relativos ao período de gravidez...

Além disso, o preceito legal em questão tem como âmbito subjectivo o "pai não unido pelo património à mãe do filho"... Então e se estiver unido pelo matrimónio, mas separado de facto, da mãe do filho? Essa mãe gestante, incoerentemente, já não tem direito a "alimentos gravíticos"? Ou estará ele compreendido no dever de assistência, previsto no art. 1675º do Cód. Civil? -vide nº 2.

Há ainda que suscitar, junto do meio jurídico, em geral, e do legislador, em particular, a questão da pertinência e da justiça no reconhecimento do direito a "alimentos gravíticos", a prestar à gestante, e fazer uma análise minuciosa e cuidada da realidade jurídica que temos e aquela que, o fluir e a dinâmica nas relações sociais, proclamam!

Resta aguardar, com serenidade, por tal evolução na prática jurídica...